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Urraca Vendaval, Urraca Funchal*


Uma cerveja não é só uma cerveja. Nunca. Nem em quantidade, nem em significado. A cerveja é uma bebida que mesmo em formatos mais simplificados e corriqueiros, extravasa o copo. Ela admite um simbolismo mutável consoante as suas características organolépticas, o seu sentido de oportunidade, o seu contexto, o seu abstracto, o seu consumidor… A cerveja é uma coisa viva. Na mesma lógica, um gole nunca é só um gole. Ele carrega em si algo ténue, mas poderoso. Como uma comoção. Uma repetição. Sim, muitas vezes, um gole é um convite para um novo gole. Na verdade, e mais vezes do que aquelas que gostaríamos de admitir, um gole é precursor de demasiados goles. Às vezes, pelo simples prazer gustativo ou pela tal conotação das coisas, um gole transforma-se num enxurro frenético de cerveja e vida. Esta história é sobre uma das cervejas mais gulosas e marotas da minha humilde vida. E da vida de alguns madeirenses.


Quando a Urraca Vendaval chegou ao Funchal, em Dezembro de 2016, levou consigo uma ideia. Um propósito. Um maneirismo. E desde então, os madeirenses têm-na conhecido e interpretado. E, por Urraca ser Urraca, se apaixonado. O seu feitio de India Pale Ale muito aromática, relativamente amarga.


Ao início, era pouco clara qual a razão para a sua rápida popularidade entre os novos e ávidos bebedores de cervejas distintas. A sua qualidade estava mais do que verificada e assumida por todos nós em território continental, mas de facto, havia uma mística diferente em volta da cerveja no meio do rochedo atlântico. Mesmo lado a lado de outras muito boas india pale ale’s nacionais, a Urraca destacava-se sempre. Ao longo dos meses seguintes, seguiram-se as provas, os pareceres despidos de preconceitos, as onomatopeias. “Uhmmmm”, “aaaahhhh”, “uuuuuii”. Bebericar Urraca era um prazer, quer para o bebericador, quer para o observador do acto. Um dia, a tal razão ficou mais clara. E a resposta, meus amigos, era o maracujá.

Obviamente, a Urraca não leva maracujá. O seu segredo é o fino equilíbrio entre um amargor tropical e uma confortável cama doce de malte com ideias subtis a caramelo. Mas não o maracujá. O maracujá era apenas uma sugestão. Uma forte sugestão dos seus lúpulos Tomahawk, Cascade e Citra. Juntos insinuavam a qualquer madeirense que se preze, um intensa imagem de maracujá. Principalmente no aroma. Os mais atentos saberão que, o maracujá regional, a verdadeira fruta regional, não a importada, é algo mágico. O maracujá madeirense faz pull-ups, push-ups, squats e outras cenas másculas que lhe fortalecem o corpo e a alma. É uma fruta holística. O seu aroma é possante, o seu sabor excepcional. Depois de vários comentários de pessoas simples, de pareceres não-geeks cervejeiros, a analogia Urraca - adorado maracujá insular, era clara. cada vez mais clara. Descobrimos então que a Urraca vendia mais porque tocava não só no palato mas também na emoção. E na saudade.


O maracujá é coisa séria por aqueles lados. É comido à colher, é usado em vinagretes, saladas, doces vários, e às vezes, até é jogado para cima de peixe. Em cima de carne nunca o vi, não vamos dizer que é estúpido, talvez seja apenas insólito. A Urraca foi, para muita gente, a primeira vez que sentiram um arrebatador aroma de algo familiar num copo de cerveja. Até então, a cerveja cheirava simplesmente a cerveja. A cartão molhado tingido a cereal barato. Hoje em dia, é cada vez mais fácil encontrar cervejas com boas combinações de lúpulos. Existem-nas cítricas, tropicais, florais, e outras sugestões variadas e todas elas muito aromáticas. A Urraca, de mão dada com a Passarola IPA (uma importante criação, infelizmente, desaparecida em combate), foram pioneiras nesse campo em Portugal. Felizmente, a escolha é maior. Hoje, é mais fácil aproximar o nosso gosto específico à cerveja certa. Saber escolher é também uma arte, e são precisos muitos erros e alguma persistência para evoluir nessa área. Saber quais as nossas cervejas favoritas e os momentos mais oportunos para as consumir, ou sermos consumidos por elas, é uma definitivamente uma arte. A Urraca é a escolha de muitos. Ela mudou um pouco, as sedes madeirenses também, mas continua pertinente, vivaz, surpreendente. E próxima de um maracujá apreciado pelos vilhões.


Cervejas assim são importantes para todo o movimento cervejeiro. São âncoras para os bebedores mais experientes, e são exclamações de espanto e contentamento para os mais inexperientes. São esses “uau’s” que justificam muitas coisas. Justificam as largas horas passadas em volta de uma cuba de brassagem, dia após dia. Justificam a obsessão pelo detalhe na produção. Justificam a utilização de matérias primas caras e equipamentos modernos. Justificam os cêntimos a mais gastos nos bons bares. Justificam beber três ou quatro ao invés de nove ou dez. Justificam procurar o bom em detrimento do mau. Justificam o falar, e falar muito, para evangelizar os amigos. Justifica, em doses pequenas, algum geekismo. Justifica partilhas de copos em busca de novas reacções de pasmo e admiração. Justifica a escrita, e a leitura deste texto.


* Por Diogo Jesus Abreu

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